Eu preciso criar um sistema, ou ser escravizado pelo de outro homem. Eu não vou raciocinar e comparar; meu negócio é criar.

- William Blake

Sunday, November 8, 2020

10 lições de Darkest Dungeon para jogos Old School - parte 2


Seguem mais algumas lições que aprendi (ou ao menos relembrei) jogando Darkest Dungeon.


1 - Personagens frágeis, arquétipos fortes. Nos jogos old school, há uma tendência a ter personagens um pouco mais frágeis. A morte dos personagens um pouco mais comum e e sua ressurreição, um pouco mais rara. Então não vale a pena se apegar demais aos personagens. Em Darkest Dungeon, o jogo é salvo automaticamente, então quando você perde um personagem (ou até o grupo inteiro) não há maneira de salvá-lo. Você simplesmente recruta novos heróis e volta para masmorra. 

Embora os personagens sejam frágeis, eles representam, por meio de suas classes (guerreiro, feiticeiro, clérigo, etc.) arquétipos fortes. As classes determinam não só os poderes mas as funções dos personagens no jogo (proteger os aliados, destruir inimigos à distância, curar ferimentos, etc.).

2 - Simplicidade. Como você troca de personagm com certa frequência, a geração de novos personagens deve ser algo simples. Ao contrário de jogos modernos, um personagens novo tem poucos "poderes" e é muitas vezes gerado de maneira aleatória. 

Em Darkest Dungeon, você simplesmente recruta o personagem que estiver disponível, sem escolher nada sobre ele. Nos jogos old school, às vezes você pode fazer uma escolha ou outra, mas é comum que os personagens sejam gerados aleatoriamente ou que sejam encontrados e e contratados como mercenários ou ajudantes para depois se tornarem personagens do jogador. 

No D&D 5a edição, ao contrário, criar um novo personagem demora algum tempo, exigindo várias escolhas. Além disso, um personagem de primeiro nível já começa com 3, 4 ou mais "poderes".

3 - Trabalho em grupo (e posicionamento). Com personagens frágeis, simples e um tanto limitados, o trabalho em grupo se torna ainda mais essencial. Nenhum personagem é capaz de fazer tudo por si só. A força do grupo não é uma simples soma de seus integrantes, mas sim decorrente da sinergia causada pela combinação adequada de habilidades de cada integrante.

Nos jogos Old School, é legal que cada jogador entenda seu papel dentro do grupo - embora os papéis não sejam totalmente rígidos.

Outra característica interessante de DD é que o posicionamento físico é importante: algumas classes lutam na linha de frente, outras na retaguarda ou mesmo na segunda linha. Nos jogos Old School, isso é um pouco mais valorizado - am alguns jogos old school, as lanças, por exemplo, podiam atacar da segunda fileira e os arcos eram inúteis no combate corpo-a-corpo.



4 - Você é o que você faz. Como vimos, os personagens são, no início, simples arquétipos. Seu passado pouco importa. Mesmo sua personalidade ainda não está totalmente definida quando o jogo começa. Apenas por meio do jogo o personagem vai ganhando mais características e nuances. 

Essa é uma lição que os jogos old school me ensinaram há algum tempo: desenvolver os personagens por meio do jogo é é muitas vezes mais divertido do que ficar criando "backgrounds" complexos que ninguém vai ler.

5 - Um mundo vivo e interessante. Em Darkest Dungeon, assim como nos RPGs OSR, a história interna de cada personagem não é tão relevante quanto o cenário em si. Embora seus personagens se desenvolvam e possam criar uma narrativa própria, o objetivo principal (ou ao menos um deles) é explorar o mundo que eles habitam. Um mundo, aliás, que se desenvolve junto com os personagens, e que estará lá mesmo depois que eles se forem. 

A ideia é que os personagens deixam sua marca no cenário, e dessa interação a "história" emerge.

Como eu aplico isso nos meus jogos?

Atualmente eu estou arbitrando (ou "narrando", "mestrando", etc.) uma campanha de Tumba da Aniquilação. É uma campanha de D&D 5ª edição, com um nível de mortalidade bem acentuado. Para me manter fiel essa proposta, resolvi adaptar as regras da 5ª edição a esse estilo mais old school - algo que tenho tentado fazer há algum temp0o, mas agora está tomando corpo. 

Nesse sistema estou usando, os personagens são gerados com poucas rolagens (algo parecido com Dark Fantasy Characters), começam sem poderes e quase sem história pregressa. Cada jogador controla dois personagens e, quando necessário, pode substituir um deles. Além disso, cada tentativa de explorar Chult é uma expedição que demanda algum planejamento de carga, rações, etc. Sempre há várias expedições disponíveis para os jogadores escolherem - numa estrutura bastante semelhante ao DD. 

Até agora tem dado certo. Vamos ver até onde isso vai. Enquanto isso, vou bolando novos meios de trazer essas lições de DD e outros jogos old school às campanhas de D&D 5ª edição.

Monday, November 2, 2020

10 lições de Darkest Dungeon para jogos Old School - parte 1

Darkest Dungeon é um jogo para PC e videogames divertido e meio viciante. Ele parece fortemente inspirado nos RPGs de estilo OSR (ou ao menos tem influência semelhantes). 

Jogar Darkest Dungeon (DD) me faz relembrar de vários princípios interessantes para os meus próprios jogos OSR (se você não sabe o que é OSR, comece por aqui - a discussão pé beeeem longa, mas basicamente são RPGs baseados nos D&Ds mais antigos, em que os "poderes" dos personagens eram menos importantes e as escolhas dos jogadores muito mais relevantes).

Claro que o interessante desse jogo não é só as mecânicas, mas o clima gótico e o visual espetacular, que casa muito bem com o tema "dark fantasy". Se você quer dar um clima mais "dark fantasy" aos seus jogos, experimente a minha linha "Dark Fantasy" (em inglês) - alguns são gratuitos e quase todos são bem baratos.

Aqui estão algumas "lições" que me ocorreram ao jogar DD.


1 - Expedições. Hoje em dia muitos RPGs são organizados por meio de sessões, aventuras, campanhas, "milestones", etc. Alguns chegam usar termos como cena, episódio e temporada, ou dividem os acontecimentos em minutos, horas e dias. Darkest Dungeon, como alguns módulos oldschool, é divido em expedições. 

A estrutura da expedição é a seguinte. Você começa em sua base, a cidade, um local mais ou menos seguro, onde você pode comprar armas e mantimentos, recrutar ajudantes, descansar, etc. Em seguida, parte para explorar uma "dungeon" - um local perigoso, em que as possibilidades de descansar ou obter recursos úteis é limitada. Por fim, caso sobreviva, volta à cidade alguns tesouros e talvez alguns integrantes a menos no seu grupo.

As campanhas de D&D 5a edição não deixam muito explícita essa estrutura, mas as duas que joguei mais recentemente certamente se beneficiam dessa perspectiva. Tente aplicar esse mecanismo de "expedições" a Tumba de Aniquilação e Maldição de Strahd e você terá resultados interessantes.

2 - Administração de recursos e carga. Administrar os recursos que serão levados na expedição se torna essencial. Sua capacidade de carga é limitada. Você precisa levar tochas para não ser surpreendido por monstros no escuro, e comida suficiente para não morrer de fome. Além disso, precisa levar pás, antídotos, bandagens e outras ferramentas úteis. Mas levar muitas coisas limita sua capacidade de carregar tesouros (e, nos jogos old school, diminui sua velocidade). 

Toda essa parte acaba perdida em jogos modernos como o D&D 5a edição, em que há capacidade de carga dos personagens é muito grande e o ouro é muito leve.



3 - Limites de tempo. Gary Gygax dizia no livro do mestre original (o primeiro DMG, do AD&D) que "VOCÊ NÃO PODE TER UMA CAMPANHA SIGNIFICATIVA SE OS REGISTROS DE TEMPO RIGOROSOS NÃO FOREM MANTIDOS." Uma ideia semelhante se aplica aqui. Embora não haja uma "contagem regressiva" explícita, quanto mais tempo você permanece na "dungeon", mais stress você acumula e mais comida e tochas você gasta - aumentando suas chances de morrer sozinho no escuro ou ficar louco.

Ou seja, o tempo, junto com tochas e comida, é um recurso escasso que deve ser administrado.

Um ponto forte de DD traz uma ferramenta extremamente útil, o medidor de stress. Embora isso não seja comum nos jogos de RPG "old school", se encaixa muito bem nesse conceito de tempo limitado. Além disso, é uma ferramenta extremamente versátil - e bem que merece um artigo sobre como integrar isso nos seu jogos de RPG. Fiquei ligado no blog que eu escrevo em breve... 

O problema do stress no jogo é que ele causa alguma quantidade significativa de stress na vida real, rs. Eita jogo difícil!


4 - Itens mundanos. Como você percebe, os itens mundanos (tochas, rações, pás) são bastante importantes. Não se trata de acumular itens mágicos poderosos, mas administrar objetos ordinários. 

Nos jogos "old school", que tem possibilidades muito mais amplas que videogame, os itens ordinários (como uma corda, uma pá ou uma vara de três metros) sempre podem ser usados de várias maneiras criativas para superar obstáculos, embora os itens consumíveis (como tochas e rações) percam parte da sua importância quando os personagens atingem os níveis mais altos.

5 - Pesadelos subterrâneos x Naturalismo Gygaxiano. Desde os primórdios do RPG as dungeons se enquadram em duas estruturas diferentes e antagônicas. Em uma delas, a dungeon é um local onírico e quase inexplicável, que contém dragões maiores do os túneis permitiriam, e criaturas  que não tem formas óbvias de se alimentar - como se viessem de um pesadelo. Em outra, a dungeon foi criada por uma razão, e as criaturas que vivem lá fazem parte de um ecossistema coerente ("naturalismo Gygaxiano"). 

Em DD, as dungeons se encaixam mais no primeiro modelo, mas fazem algumas concessões ao segundo, com criaturas aquáticas nos ambientes mais alagados e homens-cogumelo nas cavernas. O que estou aqui ensina é que mesmo nos ambientes de inexplicáveis de um pesadelo, ter algum fio de racionalidade é bastante útil para dar aos jogadores alguma chance de se preparar adequadamente para enfrentar os desafios que estão por vir. Caso não houvesse qualquer previsibilidade, toda parte da preparação dos recursos para a expedição estaria prejudicada, uma vez que não há como escolher as melhores ferramentas se não há qualquer pista do que está por vir.

Acho que por hoje tá bom. Em breve a segunda parte, explicando algumas características dos personagens nos jogos OSR.